Desde os tempos de criança aprendi a ver a quarta-feira de cinzas como algo solene, religioso e até mórbido. “A missa de cinzas é para tirar os pecados do carnaval”, dizia a avó Neném, contrita e ameaçadora. E aos meninos da casa aquilo naturalmente parecia estranho. Afinal, que pecados teríamos cometido levados ao corso pelo próprio pai, folião entusiasta?
Depois, já na adolescência, a quarta-feira assumia um tom de tristeza, de perda, de fim de festa embalado pela canção de Luis Bandeira: “É de fazer chorar/quando o dia amanhece/e obriga o frevo acabar/ó quarta-feira ingrata/chega tão depressa/só pra contrariar...”.
Hoje não é mais assim. A quarta-feira deixou de ser ingrata há muito tempo, aqui, na terra do frevo e praticamente em todos os lugares onde se cultuam os dias de Momo. A missa de cinzas continua, claro, conforme a tradição católica; e suponho que tenha cultos correspondentes nas demais vertentes religiosas. Mas quem disse que a folia acaba? No mínimo vai até o domingo, com o “Bloco do Camburão”, no Recife, na praia de Boa Viagem e com o desfile das escolas de samba vencedoras no Rio de Janeiro, só para citar dois exemplos.
No Recife e em Olinda a algazarra prossegue e a todo vapor. Tem “Os Irresponsáveis”, no bairro de Água Fria, na capital, o “Bacalhau na Vara” e o “Segura a Coisa”, pelas ladeiras de Olinda, e por aí vai.
A modernidade e o ritmo frenético da vida nas cidades se subrepõe à tradição religiosa e a necessidade de prolongar a alegria prevalece. “É o fim do mundo, meu filho”, certamente diria a avó Nenén se viva estivesse. Fim do mundo certamente não é, mas a expressão de novos costumes, sim.
O mesmo acontecerá logo mais na Semana Santa, outrora consagrada tão somente à reverência diante do sangue do Cristo derramado, mormente na sexta-feira. Basta dar uma olhada nos prospectos das agências de turiusmo para constatar o quanto se prevê de espetáculos musicais que nada têm a ver com os dobrados, marchas e peças típicas da tradição clássica ocifental ligada à liturgia católica. Pelo interior de Pernambuco avultam bandas brega (incluindo repertório irreverente e de duplo sentido), duplas sertanejas, DJs e grupos de rock'n'roll.
Tudo isso envolve também, ao lado da mudança de comportamento, sobretudo de parcelas expressivas da população mais jovem, a chamada economia da cultura. O calendário assim mesclado de religioso e profano movimenta milhões. Caso de Fazenda Nova, no Agreste Pernambucano, onde se realiza a concorrida Paixão de Cristo, e enseja ao lado rentáveis empreendimentos que vão da hotelaria às casas de espetáculo, gerando lucros e empregos temporários que justificam inclusive o suporte governamental.
Enfim, a quarta-feira de cinzas deixou de ser ingrata e cedeu seu lugar ao domingo... E assim caminha a Humanidade.
Por Luciano Siqueira, para o http://www.vermelho.org.br
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