A Primavera Árabe pode ser apropriada por fundamentalistas islâmicos |
As primeiras suspeitas surgiram com o primeiro discurso do chefe do Conselho Nacional de Transição da Líbia, o ex-ministro de Kadafi, Mustafá Abdel Jalil.
Surpreendendo muitos ocidentais que apoiaram a iniciativa de Sarkozy e Cameron de atacar aLíbia e que levaram a Otan a criar, com seus bombardeios, condições para a queda de Kadaki, o novo homem forte na Líbia declarou que a religião islamita será a principal fonte da legislação no país.
E citou claramente a chariá, conjunto dos mandamentos de Deus constantes do Corão muçulmano, de retorno à sociedade líbia.
Assim como Moisés definiu no Pentateuco do Velho Testamento as principais exigências ao povo hebreu, inclusive relacionadas com o comportamento, alimentação, vida familiar, assim também a chariá engloba os cinco preceitos principais – obrigatórios, recomendados, permitidos, desaconselhados e proibidos. A chariá é a lei em países como a Arábia Saudita, Irã, Sudão, uma parte do Paquistão e no Afganistão dos talibãs.
Diga-se de passagem, nos países onde se faz a leitura literal do Corão e dos preceitos e tradições da chariá, trata-se de uma lei cruel, rejeitada pela União Européia, pela qual as mulheres perdem praticamente todos os direitos conquistados durante o governo Kadafi.
E, se a pressão dos fundamentalistas aumentar, como pode ocorrer, já que alguns dos chefes vitoriosos fizeram treinamentos no Afganistão como militantes da Al Qaeda, as mulheres poderão ser obrigadas a utilizar a burca. Em todo o caso, o chador ou véu voltará a ser obrigatório.
Em termos de geopolítica, a implantação de governos teocráticos ou fundamentalistas islamitas na Líbia e no Egito (parece mais difícil na Tunísia, onde a tradição secular é mais arraigada) do outro lado do mar Mediterrâneo irá, sem dúvida, fragilizar a União Européia e poderá influir no comportamento da população européia, com alguns países aceitando a aplicação da chariá dentro das comunidades muçulmanas (e elas são importantes na Alemanha, na França, na Inglaterra e na Holanda), como tinha proposto há dois anos, provocando escândalo, o cardeal de Cantebury em Londres. Ou, no sentido inverso, provocando uma reação dos cristãos e iluministas contra o teocracismo.
Não passou despercebido da imprensa européia, o fato de alguns líderes da revolução no Egito levantarem a hipótese de se proibir às turistas o uso do biquini, mesmo se o turismo é a fonte de renda principal para esse país.
As revoluções se fazem, mas no momento de se decidir quem assume o poder, podem acontecer imprevistos, já que podem ocorrer ajustes de contas entre grupos que antes lutavam juntos contra o inimigo comum.
O exemplo mais marcante na história ocidental foi o registrado após a Revolução Francesa, onde os vencedores guilhotinavam seus adversários, para depois serem por sua vez guilhotinados. Isso provocou do revolucionário francês Georges Danton, a frase « a revolução é como Saturno (figura da mitologia grega) e devora seus próprios filhos ».
Em todo caso, uma rápida análise das intervenções ou novas cruzadas dos ocidentais no mundo árabe revela erros gritantes. O presidente americano Bush abriu a Caixa de Pandora no Oriente Médio ao destruir o Iraque, país laico, que garantia o equilíbrio na região e continha os xiitas iranianos.
Sarkozy, Cameron e Otan imitaram Bush ao destruir a Libia de Kadaki (sem dúvida um tirano, mas um tirano vindo do panarabismo laico de Nasser) e podem ter aberto as portas para o controle da região por combatentes da Al Qaeda, trazendo o islamismo fundamentalista e sua chariá para perto da Europa, mesmo porque se a Líbia virar fundamentalista, logo será a Argélia e o Marrocos que seguirão.
E parodiando-se Danton, se terá pervertido a primavera árabe e se repetirá o acontecido com o aitolá Komeini, que derrubou o Xá, mas criou no lugar um governo teocrático, igual à época medieval dos cristãos europeus.
E como Danton, muitos jovens que lutaram pela democracia e liberdade poderão ser as primeiras vítimas.
Só me resta uma esperança, a de estar enganado.
Por Rui Martins, jornalista, escritor, líder emigrante.
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